Leonel Moura
Há certamente alguma coisa de intrinsecamente português na crise que atravessamos.
Coisas mal feitas ou que podiam ter sido feitas melhor, problemas estruturais, maneiras de ser e de estar, clima, rotinas, atrasos. Mas aquilo que realmente determina o essencial do momento negativo em que nos encontramos não é da nossa responsabilidade. É, sobretudo, deste tempo civilizacional que nos coube viver. E, já agora, também da incapacidade de o pensar e entender.
Conjunturalmente, os economistas culpam o excesso de despesa do Estado; o esquerdismo diz que a origem do mal está no comportamento agiota e predador dos bancos; a direita aponta o dedo aos que não querem trabalhar; os demagogos acusam os políticos; e todos por junto não têm dúvidas de que foi Sócrates o causador da nossa desgraça. Argumento que, servindo de desculpa a néscios e inteligentes, a seu tempo irá desvanecendo por via dos ventos da cronologia. Nestes simplismos, esquece-se com demasiada frequência que atravessamos um período histórico de aceleradas transformações. Tão velozes e profundas que pessoas e instituições têm uma enorme dificuldade em acompanhar-lhes o passo. No topo da dinâmica de mudança está a revolução tecnológica e o tremendo maremoto que varre saberes, profissões, atividades e economias inteiras. Efeito que é potenciado pela globalização e pela legítima aspiração a melhor vida dos pobres, da China ao Brasil. No mundo da agressiva competitividade do lucro há sempre quem consiga produzir mais barato e atire, tanta vez do outro lado do planeta, imensas multidões para o desemprego. Acresce que temos assistido a uma franca decadência do papel regulador e de moderação social dos Estados. Em nome da liberdade de iniciativa, muito positiva em si mesmo, é o sentido do bem comum, da ética e da responsabilidade social que se vai perdendo. Os Estados, que sempre foram a antecâmara dos economicamente poderosos, são hoje quase totalmente dominados pelo interesse privado. Neste contexto, o permanente ataque à política, aos políticos e à democracia representativa tem claramente um objetivo ideológico de favorecimento dos poderes não-democráticos. Há ainda a considerar o efeito do número. Pense-se em Portugal. Com menos gente do que tantas cidades - São Paulo, Bombaim, Xangai ou Istambul têm cerca de 20 milhões cada -, torna-se difícil competir numa lógica de quantidade que gera qualidade. Se, a título de argumento, imaginarmos que o mundo produz um génio por cada 10 milhões de habitantes, nós só temos direito a 1. Por fim, e não menos importante, temos o fenómeno do ruído e consequente confusão mental, cultural e civilizacional, gerado pela média. A informação praticamente desapareceu, para dar lugar a uma verdadeira doutrinação quotidiana levada a cabo pelos meios de comunicação cada vez mais poderosos e omnipresentes. O jornalismo transformou-se numa militância. O campo do informativo é agora o palco privilegiado da política antipolítica. É assim que imaginar que os nossos problemas irão desaparecer através das simples receitas da redução das despesas do Estado local, diminuição das suas funções, privatização de tudo e fechamento nacional, cedo revelará ser uma grande ilusão. Há efetivamente que diminuir o papel do Estado, nalguns casos drasticamente, naqueles domínios em que ele interfere com a vida e a liberdade dos cidadãos. Mas, por outro lado, não se pode deixar de o reforçar nos campos fundamentais de acesso ao conhecimento, à saúde e bem-estar, e na defesa intransigente dos direitos de cidadania, trabalho e consumo. Ora isto não pode ser feito sem fortes convicções democráticas. O mesmo é dizer sem um manifesto sentido do bem comum. E aí, não há nada no horizonte da próxima governação de direita que aponte nesse sentido. Algumas ideias que aí vêm são mesmo bastante perniciosas. A desvalorização da educação, a sobrevalorização de tudo o que é privado, o nacionalismo e o populismo, só podem favorecer o atraso e a incapacidade de estarmos e sermos parte ativa no mundo. Não há nada de mais nefasto na procura de soluções do que não perceber o problema.
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