quinta-feira, junho 16

Os carros fora da lei

Daniel Deusdado


1. O Grande Prémio do Porto pode ter sido pensado como uma boa ideia, capaz de atrair turistas e dar uma nova marca à cidade. Mas assenta num custo invisível sobre alguns cidadãos que é intolerável. Ou seja, os gastos na sua realização não são a mera soma do dinheiro do orçamento. Entre Maio a Agosto constrói-se, ao longo de quase 5 Km, um 'autódromo' que limita passeios e garagens, interrompe o trânsito a cada passo, cria ruído para instalar a muralha metálica de protecção, etc... Chega-se ao limite de fechar as passadeiras dos peões, nos semáforos, obrigando as pessoas a andar pelas faixas de rodagem. Pergunta-se: o 'interesse público' do evento pode chegar ao ponto de sacrificar passadeiras de peões? Uma semana antes da prova? Só interessa a segurança dos espectadores do Grande Prémio?
2. Em frente à Igreja Velha de Aldoar está lá uma placa de custos de obras. Investimento: 222 mil euros, para asfaltar de novo a Avenida do Parque e alargar uma curva de forma a permitir mais velocidade aos carros. Como diz Rui Rio ao JN: "A pista tem ainda melhor qualidade que nas edições anteriores"... Mas veja-se um exemplo oposto: na Rua de António Aroso, a 100 metros do Grande Prémio, há zonas em que não há passeios. Nunca foram construídos. Como compreender isto?
3. Os habitantes das imediações do Grande Prémio sofrem brutalmente com o ruído absurdo de automóveis de competição sem limitadores de ruído. Acresce a isso um intenso cheiro a gasolina. Sendo as corridas realizadas no Verão, com dias quentes, não se pode abrir uma janela, o que significa condenar a um pequeno inferno as pessoas na sua própria casa - crianças, idosos, doentes, durante 6 dias de Verão. Ninguém comprou ou alugou casa para viver dentro de um autódromo.
4. Que legitimidade há, com provas automobilísticas como estas, para se punirem os veículos que abusam do ruído e da poluição? Em Lisboa, os veículos anteriores a 1992 vão ser proibidos de circular na baixa da capital. É um sinal do que se quer para a cidade. No Porto, é a Câmara que os leva, com dinheiro público, a poluir a níveis proibidos por lei. Os valores que estão por detrás das leis (neste caso, protecção da saúde dos cidadãos) mudam consoante os interesses pontuais do Estado ou da Autarquia?
5. Aliás, a PSP multa, à socapa, na Circunvalação, quem circular acima dos 50 km/h (e se for a 90km/h dará apreensão inapelável da carta de condução e multa até 2500 euros). Todavia, o Grande Prémio põe carros a circular ali acima dos 150 km/h e cria a fantasia perfeita de uma cidade de 'aceleras'. A zona marítima da Circunvalação é um autódromo - pelo menos na memória dos que viveram esta era. O que queremos ensinar com isto às novas gerações?
6. O Grande Prémio é, por isso, muito maior do que a simples aritmética entre turistas, patrocínios, obras e visibilidade externa. Para quê brutalizar a cidade pela velocidade? Por causa dos turistas? Pelas pessoas que gostam de ver carros de corrida gratuitamente? Onde está a sustentabilidade que o Porto tem de construir, pedagogicamente, como imagem de marca? Não será isto que, a prazo, nos trará o turismo de qualidade? As grandes cidades do Mundo dão a nota de quererem uma relação mais restritiva com os carros e menos poluição. Rui Rio, um político da velha geração, pelo contrário, torna-os num dos símbolos do Porto. É anacrónico.
7. É por isso que temos de olhar para o futuro e pôr a pensar sobre isto, desde já, o futuro presidente da Câmara (seja ele quem for). Não adianta a retórica do costume: um vencedor de eleições, eleito por maioria absoluta, tem legitimidade para fazer o que quer. Não é exactamente assim. Os eleitores podem ter muitas razões para votar num político e gostarem, ou não, dos Grandes Prémios. Mas bloquear passadeiras para peões, poluir muito acima dos níveis admitidos, esmagar o quotidiano das pessoas com ruído, ou fomentar o excesso de velocidade em espaço urbano é seguramente ilegal. E ridículo.

Sem comentários: