sexta-feira, junho 17

Primavera Árabe

Pedro Bacelar de Vasconcelos


Vem sendo observado na Europa com excessiva distância e cepticismo esse desejo de mudança e de profundas reformas políticas e sociais saudado como a "Primavera Árabe" e que, colhendo de surpresa toda a gente, irrompeu na Tunísia e correu à velocidade da Internet e das comunicações móveis por entre a juventude urbana da costa mediterrânica, de Marrocos até à Síria. O ditador da Tunísia, Ben Ali, fugiu, facilitando a abertura imediata do processo de reformas que conduzirá na próxima semana ao seu julgamento e, já em Outubro, à realização de eleições. A inesperada persistência dos manifestantes da Praça da Liberdade, no Cairo, ao fim de três semanas, provocou a queda de Mubarak, finalmente abandonado pelos militares que o suportavam. Os reis de Marrocos e da Jordânia procuram responder às reivindicações populares com o anúncio de mais ousadas reformas constitucionais. Pelo contrário, no Iémen, no Bahrein e na Síria os tiranos continuam a flagelar os insurgentes com uma repressão indiscriminada e sanguinária. Na Líbia, apesar de desentendimentos dispensáveis, ficou a NATO a garantir a resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas de interdição do espaço aéreo, para travar a ofensiva militar ordenada por Kadafi contra o seu próprio povo.
Os refugiados continuam a afluir ao Sul de Itália, o que levou a França e a Dinamarca a repor temporariamente os antigos controlos de fronteira como se enfrentassem uma ameaça de invasão... Na Turquia - que no fundo de uma longa lista de espera, atrás dos vizinhos da Alemanha, ainda aguarda ser admitida à União - as fronteiras continuam abertas aos milhares de sírios que procuram refúgio. Ao contrário da Holanda e da Dinamarca, na Turquia não existem partidos da extrema-direita a determinar as políticas de asilo e imigração, apesar dos sérios riscos de agravamento da conflitualidade inter-religiosa que crescem nas regiões fronteiriças. Os europeus suscitam na África e no Médio Oriente sentimentos ambíguos, por causa do seu passado e, reconheça-se, por causa do seu presente. Como conciliar a denúncia resoluta das violações dos direitos humanos na Líbia e na Síria, por exemplo, pela boca do primeiro-ministro inglês, David Cameron, que, simultaneamente, recebe com honras de Estado, solícito, o sultão do Bahrein?
Nas últimas semanas, tive a felicidade de conhecer pessoalmente, em Paris e no Cairo, alguns dos actores tunisinos e egípcios da "Primavera Árabe". Jovens, estudantes, advogados, jornalistas, políticos da Oposição, a sua ousadia é imensa e a sua curiosidade insaciável. Queriam aprender tudo sobre a nossa revolução democrática e eu, como professor de Direito, tinha-me preparado para lhes falar do golpe militar do 25 de Abril de 1974, das primeiras eleições livres em 1975, dos trabalhos e sobressaltos da Assembleia Constituinte e da aprovação da nossa Constituição democrática em 1976.
Não ficaram decepcionados, mas apercebi-me de que para além dos passos incertos da nossa pré-história constitucional, o que verdadeiramente os entusiasmara foram as imagens dos militares sorridentes com espingardas enfeitadas de cravos, dos civis em triunfo a trepar para cima dos tanques, os desfiles imensos, as manifestações pacíficas, os oradores inflamados. Depois dos assépticos "processos de transição política" da Europa de Leste, a "Primavera Árabe" reabilitou a palavra "revolução" onde acomodam toda a complexidade semântica da democracia nas suas dimensões culturais, cívicas, políticas ou económicas. A Constituição portuguesa, sete vezes revista, preserva ainda hoje algumas marcas dessas grandes esperanças: além do admirável preâmbulo, lá continuam as organizações de moradores, a que dedica três artigos, assim como a protecção, a par da iniciativa económica privada, das cooperativas e da autogestão. E assim fiquei a pensar na imensa energia cívica libertada pela revolução dos cravos, tão cedo desbaratada pela intensa partidarização dos movimentos populares para concluir, enfim, reconciliado: a culpa foi da "Guerra Fria".

Sem comentários: