terça-feira, junho 14

Carta aberta a Pedro Passos Coelho

Vicente Jorge Silva


Receio bem que o seu olhar tão franco seja também naif, provinciano e deslumbrado. E que os próximos tempos venham a ilustrar uma nova crónica da queda de um anjo.
Senhor primeiro-ministro,
Dizem-nos que é preciso correr contra o tempo e contra os prazos impostos pela troika e, por isso, antecipo-me à sua nomeação formal como chefe do próximo Governo. Desde domingo – e independentemente do apuramento dos resultados dos círculos da emigração – o senhor é o novo primeiro-ministro de Portugal.
Aliás, mesmo se não vivêssemos em estado de emergência, a exasperante lentidão do processo que decorre entre o desfecho das eleições e os seus efeitos políticos formais constitui um anacronismo insustentável nos dias de hoje – um anacronismo idêntico a tantos outros que simbolizam, muito para além dos seus custos orçamentais, a inércia institucional do Estado.
Recordo a sobrevivência de instituições de inspiração corporativa, como os governos civis, ou a existência de organismos e redes clientelares que, incluindo empresas municipais, fundações ou PPP, explicam uma boa parte dos problemas que o país enfrenta. Sublinho: não é apenas – nem sobretudo – um problema de custos, mas de imobilismo e bloqueio da vida nacional.
Se há um ponto em que a esmagadora maioria dos portugueses estará de acordo e sobre o qual poderá ser avaliada uma sincera vocação reformista do seu Governo, este constituirá, sem dúvida, um primeiro teste. Sem desburocratizar e desclientelizar o Estado – quebrando a velha fatalidade histórica de substituir as velhas clientelas por outras de diferente vinculação político-partidária – tudo o resto não passará de palavras vãs, nomeadamente uma que você e eu, apesar das nossas diferenças de opinião, muito prezamos: transparência.
Não votei no seu partido, mas atrevo-me a acreditar que você é melhor do que o partido que lidera. Talvez seja esse um dos motivos porque hoje lhe escrevo. Embora não o conheça directamente, você inspira-me uma simpatia pessoal e representa um capital de confiança humana que não encontrava no seu antecessor.
A saída de Sócrates deixou-me – e a tantos portugueses, como os resultados eleitorais, ao contrário das sondagens, confirmaram – uma imensa sensação de alívio que, aliás, o próprio Sócrates terá interiorizado no seu discurso de despedida, quando confessou a aspiração de viver «dias felizes». Espero sinceramente que a felicidade pessoal de Sócrates o compense – e nos compense – da infelicidade que a sua arrogância e autismo governativo causaram ao país – e eventualmente, quem sabe?, a ele mesmo.
Há quinze dias, citei aqui duas opiniões contrastadas sobre si, de Paulo Varela Gomes e Rui Tavares. Referindo-se aos debates na televisão, Varela Gomes mostrava-se sensível à franqueza do seu olhar (e ao de Jerónimo de Sousa) por oposição ao cinismo ou enviesamento dos olhares de Sócrates e Portas. Foi exactamente o que eu próprio senti.
Mas não pude deixar de identificar-me também com a impressão, mais política do que humana, registada por Rui Tavares: a de que você, ao contrário das opiniões de alguns dos seus adversários, pecava mais por ligeireza do que por extremismo. «Certas pessoas parecem não ter dúvidas por dogmatismo. Outras não têm dúvidas por inconsciência – e Passos Coelho é uma delas», segundo Tavares.
Gostaria de conciliar a minha instintiva simpatia humana em relação a si – ao seu olhar franco e directo – com, pelo menos, um benefício da dúvida relativamente às ideias e propostas que você defende. Mas receio que isso não seja de todo possível, sobretudo quando o vejo alinhar cegamente com as prescrições da troika, sem pôr em causa metas, metodologias, prazos – e até parecendo que, como tem sido dito e você não se cansa de sugerir, pretende ser mais papista do que o Papa. Quando o aluno se propõe ser mais severo do que o professor, qualquer coisa está certamente errada.
Aparentemente, para si, o erro estaria todo em nós – pelo que deveríamos expiar duramente por ele –, como se a União Europeia e o FMI encarnassem uma doutrina de redenção inquestionável e, adoptando o remédio salvífico, Portugal ficasse finalmente em condições de reintegrar um mundo virtuoso do qual fomos expulsos por culpa exclusiva do desgoverno de Sócrates.
O risco de a asfixiante austeridade que nos é imposta vir a ter resultados contraproducentes – e servir para afundar-nos ainda mais, sem uma renegociação dos juros e prazos do pagamento da dívida – é uma hipótese que, à primeira vista, você rejeita considerar, apesar das evidências grega e irlandesa ou da confusão alucinante que hoje impera nos directórios europeus (onde, em desespero de causa, já se fala na criação de um ministério das finanças à margem de qualquer projecto de integração política federal).
Posso perceber que você acredite que o memorando assinado com a troika constitui, apesar dos seus terríveis constrangimentos, uma oportunidade histórica para dar um novo rumo à nossa vida colectiva, bloqueada por tantos anos de apostas erradas, esbanjamento de dinheiros públicos, ilusões funestas de crédito fácil ou promiscuidade e clientelismo entre serviço público e interesses privados.
Não menosprezo as virtudes regeneradoras da força da adversidade – e remar contra ela pode ensinar-nos, finalmente, a navegar. Mas o pior que nos poderá estar reservado é substituir uma deriva por outra, ou seja, a ideologia do paternalismo estatal pela ortodoxia redentora do mercado – sobretudo quando é o Estado e são os cidadãos mais desprotegidos que são chamados a pagar os custos da deriva predadora do capitalismo financeiro.
Receio bem, caro Passos Coelho, que o seu olhar, humanamente tão franco, seja também ideologicamente naif, provinciano e deslumbrado. E que, como escreveu Camilo sobre uma personagem diferente de si, os próximos tempos venham a ilustrar uma nova crónica da queda de um anjo.
P. S. – Permito-me sugerir-lhe a leitura de Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos. Escrito por um social-democrata confesso e genuíno: Tony Judt.

Sem comentários: