terça-feira, junho 14

Dos obstáculos às oportunidades

Francisco Sarsfield Cabral

As duas anteriores intervenções do FMI em Portugal saldaram-se por êxitos. Como lembrou o presidente do BPI, Artur Santos Silva, na SIC Notícias, em 1977-78 Portugal tinha um défice externo semelhante ao actual (10% do PIB), o qual em 1981-82 chegou aos 14% – na altura um recorde mundial. Das duas vezes rapidamente regressámos ao equilíbrio das contas com o estrangeiro.
Claro que podíamos então recorrer à desvalorização do escudo, encarecendo importações e tornando mais competitivas as exportações, instrumento que já não está disponível. E a elevada inflação permitia uma redução real dos salários sem que os trabalhadores disso se apercebessem. Em contrapartida, após a primeira intervenção do FMI sofremos os efeitos devastadores do segundo choque petrolífero. Apesar disso, a disciplina imposta do exterior funcionou. Funcionará agora?
A primeira condição é falar verdade aos portugueses, como fez Mário Soares nas duas anteriores vindas do FMI. Um discurso de mero marketing propagandístico, ocultando a realidade, como foi o dos últimos anos, não mobiliza ninguém para a mudança de vida que se tornou indispensável. Pois se nos diziam que tudo ia bem, qual era a lógica de nos pedirem mais austeridade em sucessivos pacotes de medidas?
A dificuldade política de falar verdade está em que a mudança de vida incidirá sobretudo sobre a classe média, onde está a maioria dos votos. A quem já passa fome, ou quase, não é ético nem realista pedir novo aperto do cinto. E os realmente ricos encontram mil e uma maneiras de escapar à austeridade. Ora, a classe média actual tem exigências em matéria de emprego (não aceita certas tarefas, como servir à mesa em restaurantes ou trabalhar na construção civil) e de consumo (possuir carro e outros símbolos de ascensão social) que não tinha a classe média de há 30 anos atrás.
O outro grande obstáculo político ao reequilíbrio das nossas contas públicas e externas está nas clientelas partidárias. Os maiores partidos tornaram-se máquinas de empregos, mas agora vai ser preciso acabar com muitos desses empregos. Nas autarquias, cujo número terá de ser reduzido, e no chamado ‘Estado paralelo’ – empresas municipais, fundações, institutos, etc.
A apertadíssima vigilância que a troika irá exercer sobre a efectiva execução do seu pormenorizado memorando, negociado pelo governo de Sócrates (que o considerou um bom acordo) e também subscrito pelo PSD e pelo CDS, representa uma ajuda ao próximo governo para conseguir vencer estes e outros obstáculos à recuperação financeira do país. Tanto mais que a penalização pelo não cumprimento do acordo com a troika será drástica: deixa de vir o dinheiro, ou seja, teremos a bancarrota.
A austeridade acrescida que aí vem terá, inevitavelmente, efeitos imediatos recessivos. Mas poderá lançar as bases de uma recuperação económica a médio prazo, sem a qual o país não resolverá os seus problemas. O primeiro passo nesse sentido será, precisamente, a execução rigorosa do acordo com a troika. Não apenas para sossegar os nossos credores externos. Mas também para começar a criar confiança nos empresários portugueses, que há anos quase deixaram de investir no país. E sem investimento das empresas não haverá crescimento económico nem baixa do desemprego.
O investimento empresarial defronta uma dificuldade de monta: a escassez e o alto preço do crédito bancário. Muitas empresas portuguesas estão altamente endividadas, o que também não ajuda. E o investidor estrangeiro não se sente atraído por um país em crise profunda como está Portugal. Dar a volta a isto não vai ser nada fácil, mas o memorando da troika abre a possibilidade de, pelo menos, se iniciarem algumas reformas que há décadas vêm sendo sucessivamente adiadas.
O factor provavelmente decisivo será a qualidade da próxima liderança governativa. Passos Coelho, nunca exerceu funções de governo. Essa falta de experiência é uma limitação? Se ele e nós tivermos sorte, talvez a limitação se possa transformar em vantagem.


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