sábado, junho 11

Três desejos absolutamente líricos para o Dia de Camões

Nicolau do Vale Pais

Não percebo nada dos desígnios do acordo ortográfico, nada mesmo.

O fim do acordo ortográfico. 
Não percebo nada dos desígnios do acordo ortográfico, nada mesmo. Só consigo entendê-lo adivinhando-lhe uma óptica comercial, mercante - e a língua não é coisa que se comercie. Detecto um síndroma compulsivo de mudança permanente, uma espécie de fuga para a frente à falta de fomento de base, semelhante a quando começamos a arrastar os móveis para redecorar a sala, que afinal precisava era de obras. Não vejo de que maneira um conjunto aglutinador de alterações possa contribuir para a valorização da internacionalização da nossa cultura, sendo claro que sabemos que a inteligibilidade das variantes magníficas da língua portuguesa nunca esteve em questão. Nunca escreverei em tal "coisa": sou um "espectador" da língua, não um "espetador" de facas de gume rombo. Permitam-me a analogia: uma coisa é a evolução natural das espécies, outra coisa será o seu "upgrade" genético, mesmo que as alterações introduzidas sejam apenas a aceleração do naturalmente expectável. A Língua, para um compatriota de Camões, é o correr da História gravado nas palavras; convém que siga o seu curso natural, mantendo presente que a sua dimensão planetária é inversamente proporcional à escala do seu território nativo.

A defesa da qualidade da ficção.
Os "Morangos com Açúcar" celebram oito anos de longevidade e sucesso. Esta é uma proeza que, atendendo aos números de horas diárias de consumo de televisão pelas famílias portuguesas, tem tanto mérito quanto conseguir vender água num deserto. É mesmo um diabólico embaraço nacional a parada de "one-hit wonders" que por ali passa, numa exploração primitiva de uma juventude moldada à medida plástica dos "sponsors" do programa, principais beneficiários directos da mensagem propagandística do oco conteúdo; toda a gente teima em fazer de conta que estes não existem, para que se não levante o pano sobre o negócio da auto-proclamada "melhor ficção nacional". Na realidade, nem sequer se pode chamar "ficção" com toda a propriedade a esta pobreza de espírito, pois uma ficção seria, por definição, uma narrativa criada a partir da imaginação; ora, todos sabemos que aquele carnaval mais não é do que uma fantasia, uma fantasia de, e para o consumo como factor diferenciante entre os membros de uma comunidade. Experimente "googlar" a coisa, tope os "blogs" e afins; depois diga-me, ainda antes desse comentário em que se preparava para me rotular de elitista, o que espera realmente de uma geração cuja única imagem de si própria é aquela. A televisão não é feita por si, isso é mel para moscas; é feita pela falta de escolhas. Venha de lá um serviço público e uma política audiovisual decente, e toca a baralhar o mercado. Sociedade de consumo só vale a pena com liberdade de escolha.

A preservação do Património e o apoio à Criação.
Mais uns anitos e nem mesmo aqueles que só conseguem fazer a defesa da Cultura Portuguesa a partir do equívoco histórico-triunfal dos Descobrimentos, terão ainda edificado que lhes faça prova arquitectónica do discurso. Os monumentos portugueses estão em estado lastimoso, juntando-se, por exemplo, ao degradado edificado urbano, também ele humilhado pela treta da política para o Turismo, o completo desprezo pela coesão do território e a mais pérfida tolerância ao pato-bravo. Quantos são os locais no Mundo que adoraria visitar e onde nunca, jamais, gostaria viver? Venha de lá essa política virada para a conservação e, transversalmente, deixemo-nos de balelas: todos sabemos que, mesmo que os apoios às Artes vissem as suas verbas aumentadas em 1.000 vezes, o montante não daria para mandar comprar a bandeira para hastear na comemorações de inauguração dos novos submarinos. Aliás, só as "luvas" que jornais que ainda investigam (como o alemão "Der Spiegel") e estimam terem ficado pelo caminho neste "international" negócio davam para 50 anos de programação regular de um Teatro Nacional. Dia de Portugal é todos os dias, com especial incidência para aqueles em que, como no passado dia 5, nos arrogamos o direito à representação colectiva em troca da responsabilização individual. Não se trata de chauvinismos gratuitos, é mesmo uma questão de fundamentos para um novo modelo económico assente em três factores de competitividade universais: identidade, originalidade e qualificação. A nossa Lusa lucidez dependerá sempre da nossa criatividade e capacidade de reinvenção; essa é a nossa sina e o nosso orgulho. Resumir uma Democracia à capacidade de "castigo" do ex-governante é pequeno demais para nós. Ainda há muito Portugal para celebrar.

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