quinta-feira, junho 30

Que viva a Grécia!

Baptista-Bastos

A Grécia parece ter peçonha. Nas reuniões internacionais, Papandreou é objecto de todas as recuadas atenções e de todos os silenciosos desfavores. Os países "periféricos", nos quais se inclui Portugal, nada querem a ter com a Grécia, uma desgraça que dá azar. A simples menção do nome do país faz estremecer de horror os dirigentes da Europa "pobre." A Grécia é-lhes desprezível. Temem o "contágio", e afirmam, com fogosidade, nada ter a ver com "aquilo". Se a Europa económica e política está a desfazer-se, a Europa moral (o que quer que a expressão signifique) só não cai em estilhaços - porque não existe.
Entre dentes ou, até mesmo, com clareza impudica, políticos de países "menores" não querem paralelismos comparativos com os gregos. Os gregos são a desonra da Europa. Basta observar como o primeiro-ministro daquele país é olhado (de viés) e tratado (como um subalterno) para se entender o carácter separatista e discricionário da União. A Europa germanicamente "imperial", tão bravamente desejada e imposta por Angela Merkel, faz o seu caminho, com exclusões e inclusões das mais absurdas. A fragilidade desta pseudoconstrução, na qual se pretendia criar uma nova identidade política e económica, com base num igualitarismo de poderes e de decisões, é uma evidência - e um colossal embuste.
A Grécia, por todos os motivos que a definem e nos definem, é uma instituição cultural e uma entidade política e estética que não deve ser submetida a estas desconsiderações, enraizadas num capitalismo tão predador quanto ignorante. Diz quem não sabe: a Alemanha e os países mais ricos não podem pagar pelos erros e desmandos dos dirigentes gregos. É verdade. Porém, as causas das coisas não são tão simples. E a aplicação, à Grécia, de juros superiores a mais 20% pode sugerir--nos que há teias insidiosas, cuja invisibilidade não é assim tão obscura. A quem e a que países interessa o desmantelamento do projecto europeu, e à acentuação de uma complexidade que nos inculca um desequilíbrio insustentável?
A ideia segundo a qual a Grécia criará um efeito de dominó imparável tem adeptos poderosos. E, nos meios de comunicação, há jornalistas e comentadores estipendiados para defender essas bandeiras. As quais são as bandeiras dos poderes ocultos que ambicionam o domínio sobre os Estados e a subversão da própria democracia.
A desobediência civil, manifestada em múltiplas e diversas acções dos gregos, poderá não ser, ainda, uma sintaxe revolucionária. Poderá. No entanto, um pouco por toda a parte, as pessoas começam a fartar-se das iniquidades e violências de um sistema que encaminha as nações para o caos. Preservar a liberdade num mundo cada vez mais cercado e caracterizado pela barbárie é um imperativo moral e uma imposição de consciência.

As palavras, essa chatice

Ferreira Fernandes
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 A Grécia está explosiva. Portugal, não. As manifestações, ontem, por exemplo, em Viana, foram ordeiras. Os portugueses estão descontentes mas não se deixam desesperar. Podem estar zangados mas não estão irados. O Governo adopta soluções duras, sabendo que não será recebido à pedrada. A oposição que está no Parlamento com o fito de vir a ser Governo (e este alcançado por votos, não pela rua) é responsável. É este o retrato do País, cordato, não explosivo. Lembro-o porque, anteontem, o Presidente disse: "(...) se bem se recordam, há talvez mais de dois anos que disse que Portugal se aproximava de uma situação explosiva, lamentavelmente chegámos a essa situação explosiva." Não me recordo do que Cavaco Silva disse há dois anos e também não me vou recordar mais do que ele disse anteontem. Eu gostava, mesmo, era de um Presidente que não tropeçasse nas palavras.

Repensar a Europa

Manuel Maria Carrilho
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As ideologias são assim, têm períodos de vitalidade e fases de declínio.
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A União Europeia está nesta fase. E a deriva deste último ano e meio parece aproximá-la cada vez mais do colapso, não se vendo nada que a faça arrepiar caminho, como o Conselho Europeu da semana passada veio confirmar.
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Apesar de todos estes alertas e apelos, a que é ainda precisa juntar o espectro de uma "tempestade perfeita" que poderá resultar, nos próximos tempos, da combinação da crise da dívida europeia com o risco de incumprimento dos EUA (a dívida americana ultrapassou já os 14 mil milhões de dólares), a inflação chinesa e a estagnação japonesa - apesar de tudo isto, a União Europeia continua paralisada.
Paralisada e a pisar ovos em cima da premonitória frase de Theo Waigel, o antigo ministro das Finanças alemão que prometeu aos seus concidadãos que "der euro spricht deutsch". E, entretanto, agudiza-se o impasse entre as duas saídas para a crise, a federal e a nacional, com o federalismo sempre a perder terreno desde os chumbos de 2005 aos referendos à "constituição" europeia, e o nacionalismo a ganhar constantemente novos adeptos por toda a Europa, seja em Inglaterra ou na Holanda, na Hungria ou na Finlândia.
(...)
 E para quebrar este conformismo e os seus dogmas, só há um modo: é o de voltar à "grande" política, isto é, às ideias que podem mudar o actual estado de coisas. E que terão de ser tão ousadas como fundamentadas.
Tal só será possível cortando com a ideologia sem ideias em que se tornou a "vulgata europeia", e elaborando uma nova agenda para a Europa. Uma agenda que exija que a Comissão Europeia deixar de se comportar como um dócil secretariado de um Conselho Europeu dominado pela Alemanha. Uma agenda que leve os líderes dos países europeus a falarem mais vezes e mais demoradamente entre si, e com as respectivas opiniões públicas, de modo a encontrarem e a formularem alternativas à ortodoxia dominante. Uma agenda capaz de federar os interesses e as ideias de diversos países, sem medo de confrontar a Alemanha ou de visar os seus pontos fracos. Uma agenda que avance com iniciativas credíveis e com propostas ambiciosas, e que abra os indispensáveis debates sobre as novas circunstâncias da globalização, os paradoxos do livre-cambismo, as opacidades da "financeirização" da economia ou o interminável (e contraproducente) alargamento da União.
E é muito que se pode fazer, com iniciativas de variada ordem: política, económica, financeira, social, cultural. Uma delas, e das mais urgentes, deveria neste momento ser relativa ao valor do euro, cuja excessiva valorização nos últimos dez anos tem beneficiado sobretudo à Alemanha, e a dois ou três aliados, e prejudicado todos os demais países da Zona Euro. E esta valorização teve, é preciso sublinhá-lo, um papel decisivo na perda de competitividade de diversas economias europeias, e na eclosão da crise das dívidas soberanas. (Note-se, a propósito, que a Inglaterra desvalorizou a libra, durante a crise financeira dos últimos anos, em cerca de 20%, sem que a inflação tenha ultrapassado 1,6%...)
Este é um dos caminhos por onde é possível e urgente avançar, se realmente quisermos que o euro fale outras línguas para lá do alemão. Outros, por exemplo, são a unificação da dívida (como Roosevelt fez em 1932), a emissão de "eurobonds" e a criação de um ministério das finanças europeu. A Europa precisa de uma nova agenda que só um franco e vigoroso o debate de ideias poderá viabilizar, criando condições para que se enfrente uma especulação que se faz cada vez mais à margem de todas as regras, e que está a tornar o mundo numa verdadeira selva.

Control+Alt+Del ao programa do Governo

André Macedo
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 Da esquerda à direita, nenhum governo é inocente. O de Passos Coelho, voluntarista como todos eles são no início, é só o exemplo mais fresco. Sobre o mar, encontrei ontem esta pérola: "[Vamos] promover a interoperabilidade entre os múltiplos sectores ligados às actividades marítimas num conjunto de áreas que têm um papel de suporte e sustentação das cadeias de valor dos componentes prioritários." Frases deste calibre são às dezenas. O que me leva a confirmar que estes documentos são como os manuais de instruções dos aparelhos electrónicos - inúteis.
(...)
 O famoso memorando da troika, por exemplo, resume em 34 páginas tudo o que é preciso fazer até 2014. Se formos capazes de cumprir metade do que lá está, o País dará uma volta de 180º - veremos, depois, se para melhor. Para quê, então, 129 páginas cheias de nada quando os objectivos estão definidos? Para quê enfeitar se, no fim, não se ganha nada com isso?

Amo-te metro

Daniel Deusdado
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É fundamental que cada cidadão olhe para a utilização do transporte público da sua cidade como se estivesse a marcar um golo pela sua equipa.
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 Por exemplo, a engavetada "linha circular", no miolo da cidade (o projecto inicial apontava para as ruas de Fernão de Magalhães, Costa Cabral, Rotunda da Boavista, Campo Alegre, Palácio de Cristal e a Praça dos Leões). Ela ajudaria muito à essencial revitalização da Baixa do Porto - importante para garantir novas indústrias culturais, melhor turismo, mais reabilitação urbana. Esta linha pode muito bem ser o ovo de Colombo de uma maior capitação de passageiros no metro.
É preciso também dar solução ao problema da Avenida da Boavista. É inacreditável que a maior artéria da cidade, com elevada concentração de serviços, hotéis e pólos de turismo, esteja desintegrada da rede. Rui Rio tinha razão ao insistir com o desastroso ministro Mário Lino na necessidade de se executar a linha Matosinhos Sul-Boavista - mais barata porque está à superfície, e rápida de construir. Ainda é possível voltar atrás?
(...)
A mobilidade urbana inteligente, fiável, e sem poluição, é o que vai distinguir as cidades do futuro onde valerá a pena viver e investir.
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Passos e o momento Lehman

Paulo Ferreira
(...)
Estou com os que não vêem o Estado como o grande motor das economias, o grande criador de empregos. O Estado (e o Governo primus inter pares) deve, isso sim, criar os estímulos e as leis que facilitem aos privados a criação de riqueza (sim, já vejo os acusadores do costume a chamarem a isto neoliberalismo. Juro que não sei o que isso é).
(...)
Na sua última edição, a revista "The Economist" concluía que, se os líderes europeus não resolverem depressa o problema grego, chegará muito depressa o "momento Lehman". Isto é: a bancarrota daquele banco norte-americano arrastou, em 2008, muitos outros, criando severos danos à economia mundial. A provável bancarrota grega arrastará consigo para a lama não apenas outros países, mas talvez mesmo a Europa , tal como hoje a concebemos.

Dêem-lhe tempo

Manuel António Pina
A apresentação do Programa de Governo funcionou como tiro de partida para que vários "lobbies", habitualmente discretos, saltassem alvoroçadamente da toca vendo os seus interesses na iminência de ser beliscados.

Para Pais do Amaral e para Balsemão, não existe, no actual panorama televisivo, lugar para outro concorrente (e que raio terão os contribuintes com isso?). Com a hipotética privatização de um dos canais da RTP passaria desta vez a haver, para alguns voluntariosos críticos do "excesso de Estado", "concorrência em excesso". Ou seja: pensando melhor, talvez afinal o Estado não seja mau, principalmente se somos nós quem está debaixo do seu guarda-chuva proteccionista.
Também a notícia da suspensão do TGV parece ter posto os cabelos em pé a muita gente, do consórcio ELOS, liderado pela Soares da Costa e pela Brisa (que se preparava para cobrar 1,359 mil milhões de euros, sem IVA, pela construção, mais 12,2 milhões por ano pela manutenção dos 167 quilómetros do troço Poceirão-Caia, ameaçando agora reclamar 150 milhões de indemnização ao Estado, ao... ministro espanhol do Fomento, para quem suspender o TGV é uma "má decisão" pela qual poderão vir ser pedidas explicações a Portugal (que é como quem diz aos contribuintes portugueses).
Passos Coelho não sabe onde se meteu. Dêem-lhe tempo. Acabará, como Sócrates, por descobrir, os "lobbies" regressarão a penates e tudo voltará à normalidade.

terça-feira, junho 28

Os riscos do mundo pós-crise

Michael Spence - Nobel Economia



A principal característica da actual economia global é a magnitude e a ligação dos riscos macroeconómicos que enfrenta.
O período pós crise gerou um mundo a várias velocidades, em que as principais economias avançadas – com a notável excepção da Alemanha – enfrentam um crescimento económico baixo e um desemprego elevado e as grandes economias emergentes (Brasil, China, Índia, Indonésia e Rússia) recuperaram os níveis de crescimento anteriores à crise.

Esta divergência reflecte-se nas finanças públicas. Os rácios da dívida das economias emergentes são inferiores a 40%, enquanto os rácios das economias avançadas são, em média, superiores a 100%. Nem a Europa, nem os Estados Unidos, colocaram em prática planos de médio prazo credíveis para estabilizar a sua situação orçamental. A volatilidade da taxa de câmbio euro-dólar reflecte a incerteza sobre qual dos lados do Atlântico enfrenta maiores riscos.

Na Europa, esta situação levou à revisão em baixa dos “ratings” da dívida soberana da maioria dos países em dificuldades, acompanhada por episódios de contágio que afectaram o euro. E é provável que ocorram mais.

Nos Estados Unidos, a Moody’s emitiu recentemente um aviso sobre a dívida soberana do país devido à incerteza face à vontade do Congresso norte-americano aumentar o tecto da dívida, isto numa altura em que existe um aceso debate partidário sobre o défice orçamental. Ambas as questões – o tecto da dívida e um plano credível de redução da dívida – continuam por resolver. 

Além disso, o crescimento económico dos Estados Unidos continua a ser modesto e parece resultar, em grande parte, de sectores transaccionáveis que estão expostos e beneficiaram da procura dos mercados emergentes. O sector não transaccionável, que criou, praticamente, todo o novo emprego nas duas décadas antes da crise, está estagnado devido à escassez da procura interna e aos orçamentos governamentais seriamente limitados. O resultado é um desemprego persistente. Entretanto, o sector dos produtos transaccionáveis não é suficientemente grande em termos competitivos para impulsionar o crescimento e o emprego.

Pelo contrário, o rápido crescimento e urbanização dos mercados emergentes está a criar um “boom” no investimento global, de acordo com um estudo recente do McKinsey Global Institute. Uma consequência provável é o aumento do custo de capital nos próximos anos, aumentando a pressão das entidades altamente alavancadas, incluindo os governos que cresceram habituados a baixas taxas de juro e que podem não antecipar esta alteração.

Os países com défices estruturais da conta corrente persistentes vão enfrentar custos de financiamento externos suplementares e, eventualmente, irão atingir os limites da alavancagem. Nesse ponto, ficará clara a fraca produtividade e competitividade dos seus sectores transaccionáveis.

Terão que ser feitos ajustamento. As opções passam por aumento dos níveis de investimento financiados pelas poupanças domésticas, crescimento da produtividade e da competitividade ou salários reais estagnados à medida que o reequilíbrio ocorre através do mecanismo de taxas de câmbio (ou uma grande dose de deflação doméstica nos países da Zona Euro com problemas da dívida soberana, já que estes não controlam a sua própria taxa de câmbio).

Muitos destes problemas estavam escondidos antes da crise, atrasando a reposta política e dos mercados. Nos Estados Unidos, o excesso de consumo interno, assente numa bolha de activos alimentada pela dívida, ajudou a sustentar o emprego e o crescimento, apesar da balança de conta corrente dar sinais preocupantes. Em vários países europeus, os governos, ajudados por baixas taxas de juro, colmataram o diferencial gerado pela baixa produtividade.

Em todos os casos, as avaliações feitas ao equilíbrio orçamental basearam-se, erradamente, na suposta estabilidade e sustentabilidade das vias de crescimento existentes. A hipótese de que o ambiente favorável de crescimento e taxas de juro seria permanente gerou um fracasso em grande escala da política orçamental de contra-ciclo nas economias avançadas, à medida que os défices orçamentais se tornaram crónicos e não uma resposta à fraca procura doméstica. 

Nos mercados emergentes, o crescimento da China é crucial, devido à sua dimensão e importância como mercados exportador para o Brasil, Índia, Coreia do Sul, Japão e mesmo para a Alemanha. Mas a inflação representa uma dupla ameaça para a China, colocando em perigo tanto o crescimento económico como a coesão interna. O sector imobiliário tornou-se proibitivo para muitos jovens que estão agora a entrar no mercado de trabalho. Conter a inflação dos preços e dos activos sem afectar o crescimento vai ser uma operação delicada.

Além disso, a China partilha com os Estados Unidos o desafio de limitar o crescimento da desigualdade de rendimentos. Em ambos os casos, os motores do emprego precisam de continuar a funcionar ou de ser reiniciados para prevenir a volatilidade política e os distúrbios sociais. O proteccionismo em larga escala não é um resultado provável – mas isso pode mudar, se questões como o emprego e a redistribuição de rendimentos não forem bem resolvidas.

Para a Ásia, que é relativamente pobre em recursos quando comparada com o Médio Oriente, América Latina e África, o aumento dos preços das matérias-primas, impulsionadas, em parte, pelo crescimento dos mercados emergentes, é um factor de preocupação. A segurança energética é igualmente um importante factor de risco, especialmente dada a incerteza que se vive no Médio Oriente.

O crescimento dos mercados emergentes é um marco mundial positivo e parece ser sustentável, numa altura em que as economias avançadas vivem um período prolongado de reequilíbrio de baixo crescimento. Uma queda acentuada das economias europeias e norte-americana poderia ter um impacto significativo nos países emergentes, que podem gerar uma procura suplementar suficiente para sustentar o seu próprio crescimento mas não a suficiente para compensar uma forte queda da procura dos países avançados.

Os mercados podem ter tido em conta o efeito combinado destes riscos macroeconómicos, que actualmente são omnipresentes e correlacionados. Mas duvido. Ainda assim, todos os países partilham um interesse forte e imediato em reduzi-los. Esperemos que a consciência desta vontade acrescente um, muito necessário, sentimento de urgência às respostas políticas nacionais, bem como aos esforços do G20 e de outras instituições internacionais para melhorar a coordenação política internacional. 

As oportunidades da crise

Pedro Dionísio - ISCTE



Nos últimos tempos, muito se tem falado da crise e dos acordos com a dita troika
Nos últimos tempos, muito se tem falado da crise e dos acordos com a dita troika, com enfoque para as potenciais consequências do acordo estabelecido que terá impacto em praticamente todas as áreas da Economia nacional. Contudo, o mais importante - a forma como se deve sair da crise - tem sido pouco abordada. 

Em termos simples, a crise de endividamento externo resultou, como praticamente todos os comentadores têm referido, de um facto muito simples e de fácil compreensão: passámos décadas a viver acima das nossas possibilidades, consumindo mais do que produzimos, situação que apenas tem sido possível através da obtenção de empréstimos em condições cada vez mais desfavoráveis. 

Dito de uma forma simplista, temos um saldo muito desequilibrado da balança comercial, que não é compensado por fluxos, outrora frequentes, como é o caso das remessas de emigrantes ou o recebimento de fundos estruturais europeus, tornando inevitável défices crónicos da balança de transacções correntes. Por último, o agravamento do desequilíbrio da balança comercial foi o resultado: 

- do agravamento da deterioração dos termos de troca: no século XVIII, com o tratado de Methuen, passámos a trocar vinho do Porto por têxteis britânicos manufacturados, com maior valor acrescentado; no século XXI vendemos sobretudo produtos tradicionais, sem marca própria (nomeadamente têxteis) sujeitos a enorme pressão de preços de países com salários muito mais baixos e continuamos a não integrar os canais de distribuição nos mercados internacionais. Em contrapartida, compramos produtos sofisticados e tradicionais, parte deles com marca de origem de países mais desenvolvidos; 

- da transformação de Portugal num país de sector terciário: com excepção do Turismo, pouco contribui para entrada de receitas, com a agravante de o sector terciário - habitualmente muito menos dependente da concorrência exterior - ter atraído com melhores salários e condições de trabalho os melhores quadros e trabalhadores, que naturalmente fazem falta aos sectores que poderiam contribuir para as exportações. 

Assim, não é de estranhar, quando se analisa o perfil das empresas exportadoras, não encontramos os principais grupos e as grandes empresas, mas sobretudo PME ou empresas estrangeiras, como é o caso da Auto Europa. 

Ao cair na dura realidade, o País, ao contrário da maioria da dita "classe política", parece que começa a acordar e a virar-se para medidas práticas que possam realmente contribuir para alterar o(s) nosso(s) défice(s). 

Mais ou menos espontâneas, disseminam-se as campanhas promotoras do "Comprar Português" em canais que vão desde os despretensiosos e-mail de autoria de cidadãos anónimos, até iniciativas de órgãos de comunicação social. 

A imagem da agricultura e do trabalho agrícola estão a começar a mudar, como ainda me referia esta semana uma investigadora ligada ao assunto, a partir de um trabalho anual de pesquisa realizado anualmente na 1ª quinzena de Junho. 

Iniciativas como a do Continente, que transformou a Avenida da Liberdade numa "quinta de produtos nacionais" surgem numa época em que a agricultura nacional começa já a ser vista com outros olhos pela população. 

Paralelamente, apoiadas por diversos bancos, que já perceberam que o apoio à criação de novos projectos empresariais faz parte da sua responsabilidade social e do desenvolvimento a longo prazo, as iniciativas de empreendedorismo têm vindo a crescer. 

Outro bom sinal é que, não obstante as dificuldades já sentidas e aquelas que se adivinham no curto e médio-prazo, os portugueses evidenciam uma crescente solidariedade social, de que é exemplo a recente campanha do Banco Alimentar contra a Fome, que apresentou melhores resultados do que em anos transactos. 

O novo Governo começou por, também, simbolizar uma postura de não esbanjamento. Muito contestada por alguns que insistem em não vislumbrar o simbolismo de viajar em classe económica, ao acto deve ser visto como o início de uma nova atitude face ao despesismo e ao aproveitamento do situacionismo. 

Em síntese, todos estes sinais são importantes para criar uma vaga de fundo de mudança de mentalidades; inspirando-me em Rudyard Kipling diria que: 

- se existir uma forte liderança política, que dê o exemplo; 

- se os empresários e quadros portugueses passarem a olhar para o mundo como os portugueses o viram na segunda metade do sec. XV - "é para ser descoberto"; 

- se existir uma maior valorização do que é português; 

- se, de uma forma geral, desde o empresário ao desempregado, os portugueses se convencerem que não podem ficar à espera do apoio ou do subsídio, mas que têm de ser responsáveis pelo seu destino, lutando para encontrar as melhores soluções; 

- se for desbloqueada a área da Justiça que tem minado os valores da sociedade portuguesa; 

- se houver um maior rigor e exigência em face da massificação de educação. 

Então, seguramente Portugal sairá da crise bem mais forte do que quando nela entrou! 

E se em 2013 nos faltar o crédito?

Camilo Lourenço
Portugal tem uma extraordinária dificuldade em pôr-se de acordo para resolver os seus problemas.

Veja-se, por exemplo, as declarações de António José Seguro, discordando da ideia de o País ir mais longe do que o acordado com a troika. 

É verdade que é preciso dar algum desconto ao que Seguro, e Assis, dizem: ambos disputam a liderança do PS. Mas nenhum deles pode repetir os erros do anterior Governo, que afundou o País "correndo atrás do prejuízo": Sócrates dizia que estava tudo bem, que não era preciso apertar o cinto, para depois convocar o País, de urgência, a desdizer o que tinha dito. Foi assim com o OE 2010, com o aperto de Maio, com o aperto de Setembro, com o OE 2011 e com o último PEC (o 4º!)... Em cada orçamento, em cada "pacote" o padrão era o mesmo: o Governo respondia sempre com atraso aos acontecimentos. E, ainda pior, falhava na execução. É altura de mudar, passando a "antecipar o prejuízo". Por causa da Grécia, por causa execução da orçamental do 1º trimestre (pior do que o Governo cessante disse) e porque tudo joga contra nós: alguém acredita que a taxa de juro de 14%, a 5 anos, resulta apenas do contágio da Grécia? Não será também desconfiança quanto à capacidade de pormos a casa em ordem em dois anos? Seguro tem de perceber que a desconfiança chegou a tal ponto que já não nos basta apresentar um défice de 5,6% em 2011. Temos de surpreender. E isso implica ser muito mais ousado do que prometemos ao FMI/BCE/UE: no tempo e na profundidade das medidas. Porque se daqui a dois anos os mercados continuarem a não nos emprestar dinheiro, estaremos iguais à Grécia. E depois?

Económica, executiva e… tolices!

Camilo Lourenço
O 1º ministro decidiu ir a Bruxelas em classe económica e o assunto acabou nos jornais. O debate que se seguiu assentou na necessidade de o Estado cortar despesa. Um dia depois ficou a saber-se que, afinal, os governantes não pagam quando viajam na TAP. Daí às críticas à demagogia, sobretudo nas redes sociais, foi um passo. 



Em que ficamos? O mais importante, neste episódio, é saber se os governantes pagam bilhete na TAP (que até fica com mais lugares em executiva para vender, numa linha com muita procura)? Não. É constatar que o país, não apenas o Estado, vive acima das posses. E quando assim é, a missão de um governante responsável é contribuir para que empresas e famílias percebam isso. Dando o exemplo: quantos de nós não criticamos os nossos chefes, rosnando que quem dá maus exemplos não tem moral para pedir sacrifícios? Quando um governante decide ser frugal, seja no que for, isso tem pouco impacte nos 50% que o Estado gasta do PIB. São literalmente "peanuts". O que interessa são os sinais que passa à sociedade. E o sinal aqui (esperemos que venham mais) é dizer ao país que tem de ajustar em baixa o seu nível de despesa: esquecendo a casa dos sonhos, o carro preferido, as férias nas Caraíbas, recorrendo menos ao crédito, vivendo com menos luxos. Um banqueiro disse-me um dia que o seu banco contratara "xis" horas de voo a uma empresa de jactos executivos. Como o banco raramente esgotava essas horas, a empresa sugeriu que utilizasse o avião para ir de férias. "Nunca o fiz. Mesmo sabendo que não custava mais à empresa", confessou". "Porquê?", perguntei. "Como é que depois tinha moral para cortar postos de trabalho"? Voilá!

Um país dominado por corporações

Camilo Lourenço
A última semana e meia foi um belíssimo retrato da sociedade portuguesa. Primeiro a divulgação, pelo Observatório da Saúde, de um relatório que referencia atrasos escandalosos na marcação de consultas (o relatório tinha erros mas o retrato não deve estar longe da realidade...).

Pois não passou um dia sem o “establishment” rebater, qual virgem ofendida, o estudo (com ameaças de processos em tribunal). 

Dias depois a Inspecção-Geral de Finanças (IGF) detectou casos de potencial fraude em 40% das despesas com a comparticipação de medicamentos. No mesmo dia lá apareceram as inevitáveis “condenações”. Esquecendo-se que o documento fornece dados inquietantes: receitas passadas em nome de médicos falecidos, médicos com milhares de receitas passadas por ano, etc.A semana não terminou sem mais um exemplo do desperdício de dinheiros do contribuinte: uma auditoria da IGF ao Ministério da Justiça detectou 165 mil euros em pagamentos a magistrados... já falecidos. O mesmo documento diz que o Ministério não dispõe de “informação actualizada sobre os trabalhadores a quem processa remunerações e suplementos e sobre a sua assiduidade”.É este o Portugal moderno. Um país com muita coisa errada... mas onde as corporações não deixam mexer em nada. Só há uma forma de mudar isto: estar disposto a perder as próximas eleições. Porque a “limpeza” vai mexer com tantos lobbies que estes não hesitarão em por o país a ferro e fogo para não perderem privilégios.P.S – A directora do CEJ demitiu-se depois de “correr” a nota 10 aspirantes a magistrados que copiaram num teste. Mas o problema mantém-se: como é que quem prevaricou vai um dia julgar alguém?

segunda-feira, junho 27

O euro vai escapar por um triz

Wolfgang MunchauEditor associado do "Financial Times"


A semana que passou ensinou-nos uma importante lição sobre a economia política da zona euro. Temos duas crises graves e sobrepostas: a deterioração da disputa entre a Alemanha e o Banco Central Europeu (BCE) sobre se os investidores privados devem pagar uma contribuição no próximo empréstimo à Grécia e a possível queda do governo chefiado pelo primeiro-ministro grego, George Papandreu.
No final da semana, a Alemanha capitulou. Papandreu remodelou o executivo, que reúne agora maior número de reformistas. Durante a semana, os comentadores atropelaram-se na ânsia de prever o iminente incumprimento da Grécia e a inevitável ruptura da zona euro. Enganaram-se, embora tudo possa ainda acontecer. A política grega é imprevisível e o Parlamento alemão também. No entanto, nada vai acontecer na próxima semana ou no próximo mês.
Para manter a Grécia no programa da União Europeia (UE) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) é preciso que Atenas cumpra as condições acordadas e que estas sejam razoáveis. O programa tem primado pela austeridade, mas terá de evoluir para reformas a fim de manter a credibilidade. A austeridade por si só não funciona. Porém, e mesmo que fosse implementado um programa sensato, duvido que os gregos conseguissem pagar a totalidade da sua dívida.
Porque haveriam de querer entrar em incumprimento neste preciso momento? Um incumprimento prematuro poria fim à ajuda da UE/FMI, vedaria o acesso aos mercados de capital internacionais e, provavelmente, aos empréstimos do BCE. Mais. Seria o colapso do Estado. O governo não teria como pagar salários e pensões. A actual austeridade é branda por comparação. Se o leitor fosse um cidadão grego manifestamente contra a austeridade não entraria em incumprimento agora. Cumpriria o necessário até atingir o saldo primário e, depois, o incumprimento. Mas isso só vai acontecer no próximo ano ou possivelmente em 2013.
Ao que tudo indica, Angela Merkel também não quer que a Grécia entre em incumprimento. Ao reconhecê-lo publicamente enfraqueceu a sua posição negocial. No entanto, é uma atitude racional. A Alemanha seria um dos grandes perdedores. O colapso da zona euro fragilizaria a sua economia. O mundo inteiro culparia a chanceler e esta ficaria para a História como a alemã de Leste que afundou a UE.
Infelizmente, o novo pacote de ajuda não é o mais adequado. Primeiro porque parte de um pressuposto demasiado optimista em relação à escala da participação do sector privado. Segundo porque é irresponsável pôr de lado um valor para as receitas das privatizações no próprio pacote financeiro. Usá-las para reduzir a dívida seria mais credível. Antevejo a necessidade de um terceiro pacote no próximo ano, mas seria melhor negociar um a toda a prova até 2014 que não deixasse margem para dúvidas.
Se Merkel estivesse verdadeiramente interessada em acabar com a crise grega, como prometeu, teria de capitular em diversas frentes. Se anunciasse o perdão parcial da dívida, a criação de ‘eurobonds' e de uma pequena união orçamental, aí sim, poria fim à crise. Ainda não chegámos lá, mas a lição a retirar da semana passada é que caminhamos nessa direcção.
Tradução de Ana Pina 

Uma proposta ousada

Vitor Bento
Como se sabe, um dos problemas que tem atormentado a qualidade da Administração Pública e o funcionamento do próprio regime democrático, é a partidarização do aparelho de Estado e a utilização deste para satisfazer clientelas partidárias.
Agora que se inicia um novo ciclo político, que o primeiro-ministro já sinalizou ter este problema em mente, e que ao tema foi dado destaque no discurso do Presidente da República aquando da tomada de posse do novo Governo, talvez seja oportuno trazer a público uma sugestão para lidar com o problema.
Esta sugestão assenta em três pontos. O primeiro é a reversão da orientação legal em vigor e segundo a qual os dirigentes da Administração Pública cessam funções com o Governo que os nomeou. Em seu lugar, deve ser estabelecido que os mandatos destes dirigentes devem ser mantidos até ao fim, só podendo ser interrompidos a pedido dos próprios ou em caso de provada irregularidade por si cometida.
O segundo ponto consiste na identificação de um conjunto de cargos dirigentes - Directores-Gerais, Conselhos Directivos de Institutos Públicos e Administradores de Empresas Públicas - considerados fundamentais na gestão pública e na sujeição das nomeações para esses cargos a um processo de escrutínio público conduzido por um painel de avaliadores, de cuja aprovação dependerá a confirmação da nomeação. Não precisarão de ser todos os dirigentes, pelo menos numa primeira fase e até o processo estar rodado, para que se não paralise a Administração por dificuldade de dar vasão a todas as nomeações que, num primeiro momento, inevitavelmente terão que ocorrer, até por força da caducidade automática dos mandatos.
Um tal painel deverá ser composto por cinco ou sete personalidades de reconhecido mérito, designados, em parte por 2/3 do Parlamento, e em parte pelo Presidente da República, com mandatos de cinco anos, escadeados (como acontece com o Conselho Executivo do BCE), por forma a prevenir abruptas mudanças de composição ou de critérios de avaliação. E o seu juízo terá que ser expresso num determinado prazo máximo - um a três meses - sob pena de a nomeação sujeita a escrutínio ficar tacitamente validada.
O terceiro ponto será o de pagar aos dirigentes - pelo menos aos mais relevantes para o bom funcionamento do Estado - de acordo com as exigências de qualidade da função e as responsabilidades atribuídas. Não terão que ser remunerações totalmente "alinhadas com o mercado", poderão ter um desconto razoável face a esse "alinhamento" e poderão tomar como referência, por exemplo, as praticadas nas principais empresas públicas.
Esta matéria tem sido, de há muito, dominada pela demagogia e pela ideologia igualitarista, tendo como consequência a desqualificação da máquina pública e, sob a aparência de falsas poupanças, tem encarecido o Estado. Basta lembrar toda a polémica que existiu à volta da remuneração do dr. Paulo Macedo, quando foi Director-Geral dos Impostos, apesar de ele ter sido, provavelmente e tendo em conta os resultados obtidos, o dirigente mais barato da Administração.
É certo que agora não será tempo disto, mas convém pensar a sério no assunto para quando for possível.

O caso da doutora Dra

Jorge Fiel
O caso da doutora Dra é um das mais saborosas histórias do último fôlego da presença portuguesa em Macau.

Foi assim. Como de costume, mal desembarcavam no território, os quadros vindos de Lisboa recebiam logo um dossier, competentemente preparado pelo BNU, contendo a papelada para preencherem com os dados pessoais com vista à abertura da conta onda cairiam as patacas e à emissão do conveniente cartão de crédito.
Sucede que a trintona, que mais tarde seria conhecida por doutora Dra, receosa que o banco ignorasse a sua licenciatura em Direito, feita em Coimbra, fez questão de anteceder de um Dra o nome com que fora baptizada.
A jurista (que nem que me torturem revelarei que seria mais tarde ministra de Guterres) fez mal em desconfiar da eficiência dos serviços do BNU e pagou por isso. Doutora Dra Maria... foi o nome gravado no cartão de crédito e que passou a figurar no endereço da correspondência bancária que lhe era enviada para casa. E a comunidade local passou a referir-se-lhe como a doutora Dra (com o a acentuado).
Na generalidade, nós, os portugueses, pelamo-nos por ostentar títulos (sejam académicos ou nobiliárquicos) e sinais exteriores de riqueza.
Nestes particulares, tenho muito orgulho em que estes pecadilhos não constem do meu extenso rol de defeitos.
Apesar de contar com uma licenciatura no meu curriculum, jamais deixei que um dr. antecedesse o meu nome nos cartões de crédito e sempre desencorajei, logo à partida, qualquer tratamento por doutor.
E não andarei longe da verdade se vos confessar que a principal razão para nunca ter sido multado por excesso de velocidade reside no facto de jamais ter tido um carro com potência suficiente para ultrapassar esse limite.
Vem este episódio da doutora Dra e os dois exemplos da minha modéstia (que, admito, talvez seja uma sofisticada manifestação de vaidade) a propósito de ter captado uma série de sinais positivos emitidos pelo novo Governo.
Por três vezes Passos Coelho subiu uma data de pontos na minha consideração. A primeira quando soube que abdicara voluntariamente da reforma vitalícia a que tinha direito como deputado. A segunda quando decidiu continuar a viver em Massamá. A terceira quando escolheu voar em Económica até Bruxelas - não interessa se o Governo paga ou não a viagem. O que importa é o exemplo.
Também apreciei muito que no sábado, na sua primeira aparição pública, o ministro da Economia tivesse pedido que o tratassem por Álvaro, em vez do tratamento tradicional e bajulatório de "senhor ministro".
A admiração e o respeito não se conquistam com títulos académicos, vistosos carros pretos ou poltronas de 1.ª classe. Antes pelo contrário.

"No pasa nada"

Manuel António Pina
Em notícias como a de que o Exército pagou ilegalmente (aplicando, segundo a IGF, uma regra que "carece de suporte legal") 8,4 milhões de euros em remunerações, o que implicou ainda uma "revalorização" de outros salários que custou aos contribuintes 2,6 milhões por mês; ou a de que o Ministério da Justiça pagou centenas de milhares de euros em "subsídios de compensação" a magistrados que a ele não tinham direito, incluindo mortos; o que mais surpreende é que vêm a público e não se volta a ouvir falar no assunto.

Bem podem os portugueses interrogar-se sobre se os milhões pagos ilegalmente terão sido restituídos e se terá sido responsabilizado quem ordenou ou permitiu os pagamentos. Nunca terão resposta. Um denso pano cai sistematicamente sobre casos destes e, depois, a generalizada falta de memória faz o resto.
Em plena crise económica, o Comando-Geral da PSP gasta dinheiro em festarolas de aniversário quando muitos milhares de portugueses não têm que comer e a própria PSP vive afogada em carências de toda a ordem?; o Estado paga 15,7 milhões de euros em "estudos" a certos escritórios de advogados?; há autarquias que gastam 587 503 euros em concertos de Tony Carreira e Quim Barreiros, 4 324 163,13 em "festas" e 700 000 em corridas de automóveis?

"No pasa nada"... 
Os contribuintes "pergunt[am] ao vento que passa/
 notícias do [seu] país/
 e o vento cala a desgraça,/
o vento nada [lhes] diz".

Quatro notas políticas

Rui Moreira
O fiasco da eleição falhada de Fernando Nobre foi um dos factos relevantes desta semana em que o novo Governo tomou posse. Andou mal o candidato, não só por logo nas primeiras declarações que fez após o convite ter desrespeitado o órgão de soberania a que queria presidir, mas também por não ter recuado, agora, quando toda a gente sabia que o seu nome iria ser chumbado. Fez dó ver uma pessoa que tem uma carreira cívica notável expor-se a este enxovalho, não cuidando, em tempo útil, de salvar a face e de evitar o embaraço ao líder do PSD. E, quando ouvi o discurso extraordinário de Assunção Esteves, que ficará na história do Parlamento, fiquei com a certeza de que a presidência fica muito bem entregue, o que é saudável para a nossa democracia. Além disso, e ao contrário do que alguns comentadores referiram, o que pude ouvir, por exemplo no fórum da TSF, mostra que os portugueses não consideram que se tenha tratado de um fracasso de Pedro Passos Coelho, que faz a diferença com um estilo de fazer política que só se pode saudar e a que não estamos habituados. Os grandes homens são os que assumem os seus compromissos, e foi isso que ele fez, sem calculismos, mesmo sabendo que a sua proposta iria ser recusada, e por culpas que não lhe podem ser assacadas.

A composição do Governo confirma que Passos Coelho disse ao que vem, e pretende cumprir com essas promessas. Assim se compreende, por exemplo, a escolha do ministro das Finanças, um independente com larga experiência e excelente reputação nas instituições europeias. E, naturalmente, houve logo quem dissesse que era um neo-liberal, entre muitos ministros sem experiência. Ora, depois de dezasseis anos em que o PS dominou a política nacional, com um curto interregno de três anos, dificilmente se poderia encontrar gente com experiência de governação. Se tivesse sido essa a escolha de Passos Coelho e de Paulo Portas, os mesmos críticos diriam que a brigada do reumático regressara ao poder.
Entretanto, vão-se ouvindo as vozes que não se conformam com o resultado das eleições e questionam a legitimidade social do Governo recém-empossado. É um discurso perigoso porque, nas democracias representativas, a legitimidade política expressa-se pelo voto. E foi o voto dos portugueses que impôs a mudança. A mera sugestão de que a vontade expressa nas urnas é ilegítima, ou tem menos legitimidade do que a dos movimentos contestatários, é preocupante. Até porque se sabe que este executivo deverá aplicar a receita da troika que foi objecto de um compromisso histórico que envolve o PS, e que apenas foi recusada por partidos que representam 15% do eleitorado. Mas, para além desse pormenor, há uma questão que não pode se esquecida. É que a ideia de que há uma supremacia da legitimidade social sobre a legitimidade democrática foi sempre utilizada pelas forças totalitárias que se opõe à democracia, e que contra ela conspiram, aproveitando a liberdade que lhes é concedida por esse sistema que, finalmente, pretendem destruir.
Numa entrevista ao jornal "I", Miguel Portas fez um diagnóstico sério e cândido sobre os problemas com que o Bloco de Esquerda está confrontado, depois do desastre eleitoral. Rejeitando os argumentos de Daniel de Oliveira, que propõe a realização de uma convenção extraordinária com um resultado previamente anunciado, e criticando Rui Tavares por ter abandonado o grupo parlamentar europeu por um pretexto irrelevante, confessa que existe um problema de credibilidade política do grupo quatro de fundadores que integrou, e defende que se devem afastar da liderança. Na medida em que ele já deu o exemplo, e que Fernando Rosas não foi eleito para o Parlamento, o que Portas defende é, de facto, o afastamento de Louçã e de Fazenda. Resta saber, agora, se esse processo evolutivo está ao alcance de Louçã ou se este pretende, como Rui Tavares sugere, resolver as divergências internas através de purgas sucessivas.