sexta-feira, julho 13


Henrique Raposo




Caro funcionário da República, venho por este meio informá-lo de que V. Exa. está pejadinho de inconstitucionalidades. É, pelo menos, o que ouvi dizer. E quem o diz não é um qualquer. Se aplicarmos com rigor o princípio da equidade invocado pelo Tribunal Constitucional (TC), chegamos a várias inconstitucionalidades no estatuto do funcionário público. Para começar, V. Exa. não enfrenta o fantasma da falência, ao contrário do mero mortal que trabalha lá fora, esse sítio onde se fazem contas à vidinha. A falência do seu patrão é uma impossibilidade física e metafísica. Ou melhor, o seu patrão até pode abrir falência, mas há sempre uma troika e os impostos de toda a gente para o salvar. Eis, portanto, a primeira inconstitucionalidade, que é a causa da segunda: V. Exa. não enfrenta o espetro do desemprego. A lei, escrita e não-escrita, protege o funcionário público do despedimento. Quando uma empresa deixa de facturar, os trabalhadores vão para o desemprego, porque a dita empresa tem de fechar portas. Quando deixa de fazer sentido, uma repartição pública continua aberta. Pior: se, num acto de loucura, o governo decide fechar a repartição, os funcionários não são despedidos; são inseridos num quadro de excedentários. Na vida real, lá fora, onde faz frio, não existem estas redes de segurança inconstitucionalíssimas.
Em terceiro lugar, parece que a Caixa Geral de Aposentações de V. Exa. garante reformas num regime privilegiado em relação ao resto da população . E o que dizer da ADSE, a quarta inconstitucionalidade? Durante anos e anos (décadas?), este exclusivo dos funcionários públicos foi o grande seguro de saúde do país. Agora, a ADSE parece que está em declínio, mas isso não apaga os benefícios usufruídos nos anos de glória da ADSE e não invalida a situação de privilégio ainda existente: um utente normal tem de ir ao SNS, mas V. Exa. pode ir à clínica/hospital privado de sua preferência. Durante anos e anos, esta foi a maior inconstitucionalidade: a melhor parte da saúde financiada pelo Estado era um privilégio de V. Exa. O TC e os profetas da equidade nunca abriram a boca sobre este assunto e a expansão da ADSE à população inteira foi sempre um tabu inconstitucionalíssimo.
Quinta inconstitucionalidade? A taxa de absentismo de V. Exa. é seis vezes superior à das empresas normais e essas empresas nunca tiveram a prática das promoções automáticas, outro mistério inconstitucional (o sexto). Sétima? Por que razão a percentagem do PIB português utilizada para pagar salários da função pública é superior à média europeia? Oitava? Bom, poderíamos estar aqui o dia todo, poderíamos chegar até à vigésima, mas por hoje já chega, meu caro amigo. Já estou a transbordar de inconstitucionalidade, já tenho alíneas de privilégio a sair pelas orelhas. Para terminar, e enquanto espero pelas considerações do TC sobre estas alíneas, só queria dizer que continuarei aqui nas galés, remando ao som do batuque inconstitucionalíssimo de V. Exa.

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