quinta-feira, junho 23

Da economia paralela

Paulo Ferreira


"Um médico passou 32 mil receitas num ano. Outros, com mais de 80 anos, ainda prescrevem. Alguns, afinal, já morreram. Há serviços públicos onde se prescreve seis vezes mais do que noutros idênticos. E há um número: 40% dos gastos do Estado com fármacos são irregulares".
"Um médico passou 32 mil receitas num ano. Outros, com mais de 80 anos, ainda prescrevem. Alguns, afinal, já morreram. Há serviços públicos onde se prescreve seis vezes mais do que noutros idênticos. E há um número: 40% dos gastos do Estado com fármacos são irregulares".
O parágrafo acima abre a peça que hoje publicamos na página 4. É um susto. Está no domínio do surreal. Infelizmente, é o retrato de um certo Portugal.
As aterradoras conclusões constam de um relatório da Inspecção-geral das Actividades da Saúde, que confirma e corrobora o teor de um outro documento que a Inspecção-Geral das Finanças publicou recentemente.
Não vale a pena fustigar, com mais ou menos violência, o sector da Saúde. Sabemos todos, de ciência certa, que noutros sectores de actividade, pública e privada, passa-se o mesmo. Ou pior. A economia paralela (negócios, transacções e serviços que se fazem e prestam escapando aos impostos) vale no nosso país qualquer coisa como 33 mil milhões de euros. Contas por alto, aquilo que o Estado deixa de encaixar com as manigâncias corresponde a um quinto da riqueza que os portugueses produzem num ano. Uma brutalidade.
E a dimensão desta fraude tenderá a crescer nos próximos anos. Apertados pelas medidas que a troika nos impôs, a ver se ganhamos juízo, é bastante provável que aumente a tendência para (tentar) escapar às malhas do Fisco.
A fuga de quem usa colarinho branco estará facilitada pelos avisados caminhos apontados por eminentes especialistas em direito fiscal, capazes de procurar com a ajuda de uma lupa os buraquinhos que a lei abre e, posteriormente, é incapaz de punir.
Estarão pior os que não têm recursos para tamanhos luxos. Mas, mesmo aqui, sabemos como é amplo o laxismo de quem prega a cidadania apenas até ao ponto em que ela obriga a seguir, com rigor, as obrigações fiscais. O dr. Paulo Macedo, agora ministro da Saúde, assustou-nos a todos, quando pôs a máquina fiscal a cobrar o que devia. Não é líquido que esse medinho permaneça nas cabeças de pequenos e grandes empresários, de cidadãos cumpridores e incumpridores. Quando falta o pão...
Este é também o retrato de um país que sonhou alto e incutiu no cidadão comum a ideia de que se o vizinho tem um novo televisor ou um novo carro, não há razão para ele não almejar a coisa ainda melhor. Se para alcançar esse glorioso objectivo for necessário incumprir, fazer uma falcatruazinha ou uma falcatruazona, isso resolve-se com recurso à consciência. Ela dirá: "Se os outros fazem, por que razão não hei-de eu fazer?". Segue-se um círculo vicioso capaz de afundar um país. Estamos lá perto.

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