quinta-feira, junho 30

Repensar a Europa

Manuel Maria Carrilho
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As ideologias são assim, têm períodos de vitalidade e fases de declínio.
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A União Europeia está nesta fase. E a deriva deste último ano e meio parece aproximá-la cada vez mais do colapso, não se vendo nada que a faça arrepiar caminho, como o Conselho Europeu da semana passada veio confirmar.
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Apesar de todos estes alertas e apelos, a que é ainda precisa juntar o espectro de uma "tempestade perfeita" que poderá resultar, nos próximos tempos, da combinação da crise da dívida europeia com o risco de incumprimento dos EUA (a dívida americana ultrapassou já os 14 mil milhões de dólares), a inflação chinesa e a estagnação japonesa - apesar de tudo isto, a União Europeia continua paralisada.
Paralisada e a pisar ovos em cima da premonitória frase de Theo Waigel, o antigo ministro das Finanças alemão que prometeu aos seus concidadãos que "der euro spricht deutsch". E, entretanto, agudiza-se o impasse entre as duas saídas para a crise, a federal e a nacional, com o federalismo sempre a perder terreno desde os chumbos de 2005 aos referendos à "constituição" europeia, e o nacionalismo a ganhar constantemente novos adeptos por toda a Europa, seja em Inglaterra ou na Holanda, na Hungria ou na Finlândia.
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 E para quebrar este conformismo e os seus dogmas, só há um modo: é o de voltar à "grande" política, isto é, às ideias que podem mudar o actual estado de coisas. E que terão de ser tão ousadas como fundamentadas.
Tal só será possível cortando com a ideologia sem ideias em que se tornou a "vulgata europeia", e elaborando uma nova agenda para a Europa. Uma agenda que exija que a Comissão Europeia deixar de se comportar como um dócil secretariado de um Conselho Europeu dominado pela Alemanha. Uma agenda que leve os líderes dos países europeus a falarem mais vezes e mais demoradamente entre si, e com as respectivas opiniões públicas, de modo a encontrarem e a formularem alternativas à ortodoxia dominante. Uma agenda capaz de federar os interesses e as ideias de diversos países, sem medo de confrontar a Alemanha ou de visar os seus pontos fracos. Uma agenda que avance com iniciativas credíveis e com propostas ambiciosas, e que abra os indispensáveis debates sobre as novas circunstâncias da globalização, os paradoxos do livre-cambismo, as opacidades da "financeirização" da economia ou o interminável (e contraproducente) alargamento da União.
E é muito que se pode fazer, com iniciativas de variada ordem: política, económica, financeira, social, cultural. Uma delas, e das mais urgentes, deveria neste momento ser relativa ao valor do euro, cuja excessiva valorização nos últimos dez anos tem beneficiado sobretudo à Alemanha, e a dois ou três aliados, e prejudicado todos os demais países da Zona Euro. E esta valorização teve, é preciso sublinhá-lo, um papel decisivo na perda de competitividade de diversas economias europeias, e na eclosão da crise das dívidas soberanas. (Note-se, a propósito, que a Inglaterra desvalorizou a libra, durante a crise financeira dos últimos anos, em cerca de 20%, sem que a inflação tenha ultrapassado 1,6%...)
Este é um dos caminhos por onde é possível e urgente avançar, se realmente quisermos que o euro fale outras línguas para lá do alemão. Outros, por exemplo, são a unificação da dívida (como Roosevelt fez em 1932), a emissão de "eurobonds" e a criação de um ministério das finanças europeu. A Europa precisa de uma nova agenda que só um franco e vigoroso o debate de ideias poderá viabilizar, criando condições para que se enfrente uma especulação que se faz cada vez mais à margem de todas as regras, e que está a tornar o mundo numa verdadeira selva.

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