Os assobios a José Sócrates nas comemorações do 10 de Junho, no seu próprio distrito, conduziram-me irresistivelmente a um almoço que tivemos em 2003, no restaurante Pabe.
António Guterres demitira-se uns meses antes, Sócrates saíra com ele do Governo e Durão Barroso era na altura o primeiro-ministro.
Dizia-me então José Sócrates nesse almoço: «Na política não há gratidão. Veja o que aconteceu ao Guterres: deu o seu melhor pelo país e hoje tem toda a gente a atacá-lo. E vai acontecer o mesmo ao Durão Barroso. Por isso, a actividade política não está no meu horizonte. Vou para Londres tirar um mestrado, e nos próximos tempos dedicar-me-ei por inteiro à vida universitária».
Era uma revelação extraordinária e eu acreditei cegamente nela.
Como Sócrates não pediu segredo sobre o conteúdo da conversa, quando cheguei à redacção comuniquei as suas intenções à jornalista que tinha a seu cargo o acompanhamento do Partido Socialista (a Cristina Figueiredo), que retorquiu: «Não pense nisso! Toda a gente no círculo próximo de Sócrates sabe que ele está a preparar a candidatura à liderança. Está tudo pronto para que, quando o Ferro Rodrigues cair, ele avance».
Insisti.
Não era crível que, num encontro a sós, sem qualquer motivo aparente para não falar verdade, Sócrates me dissesse exactamente o contrário do que estava a planear fazer.
Fiquei, portanto, na minha – e a jornalista ficou na dela.
Mas era ela quem estava certa: passados uns meses, Ferro demitia-se da liderança do PS, Sócrates candidatava-se e ganhava com grande à-vontade. Seis meses depois seria primeiro--ministro.
Nunca, nos meus contactos com políticos, encontrei uma pessoa assim: que me tenha iludido tão completamente.
Mas, por ironia, Sócrates naquele almoço também antecipou o seu futuro.
Disse que ia afastar-se da política para não sofrer a ingratidão dos seus concidadãos – e no fim do seu reinado está a ouvir os apupos dos portugueses, entre os quais os da própria terra onde cresceu e se fez homem!
Seria duro – caso ele não estivesse preparado para isso.
Mas está, como todos os homens que se habituam a viver de expedientes e enganos.
Um companheiro de juventude de Sócrates contou-me recentemente histórias reveladoras a seu respeito.
Sempre foi desenrascado, chegava muitas vezes tarde ao emprego e saía cedo, e era adepto da teoria do ‘logo se vê’.
Fazia e dizia o que mais lhe convinha fazer ou dizer em cada ocasião – e depois ‘logo se veria’ o modo de sair da enrascadela.
Como primeiro-ministro, também foi isso que sempre fez.
Dizia o que mais lhe interessava em cada momento, às vezes mentia, empurrava os problemas para a frente na certeza de que se resolveriam – e a verdade é que isso funcionou durante seis anos.
Recorde-se que, antes de subir ao poder, prometeu que não aumentava os impostos – e subiu-os logo que lá chegou; mais tarde baixou o IVA e aumentou os funcionários públicos em período eleitoral, deixou disparar o défice, acumulou dívida para além do limite do tolerável e adiou ao máximo o pedido de ajuda externa.
Apostou sempre no ‘logo se vê’.
Só que chegou a um ponto em que se viu encurralado e sem margem para fugir por lado nenhum.
Outra revelação foi que Sócrates, em jovem, se alojava no hotel da sua própria terra.
Os pais estavam separados – e ele, em vez de ir para casa de um ou de outro (ou para casa de tios ou avós, como era hábito na época), instalava-se como grande senhor no hotel da vila, mostrando que nem todos são iguais.
E quando chegou à idade de conduzir comprou um Mercedes, em que se passeava pelas ruas do burgo e no qual ia em viagem ao estrangeiro, provocando a inveja dos que andavam a pé ou de bicicleta.
Estas pequenas histórias dão-nos um bom retrato do ainda primeiro-ministro e explicam muito do seu comportamento: exibicionista, desenrascado, pouco confiável, capaz de dizer uma coisa estando a planear fazer outra diferente.
Por outro lado, se Sócrates foi lúcido ao perceber que as carreiras políticas têm muitas vezes um final infeliz, não soube resistir ao apelo do poder e sofreu aquilo que dizia querer evitar.
O que me custa a entender é que uma pessoa com estas características tenha sido apoiada durante tanto tempo por tanta gente de bem.
Com excepção de Campos e Cunha e Freitas do Amaral, todos os seus ex-ministros o defenderam até ao fim, mesmo aqueles que foram maltratados, como Teixeira dos Santos, ou demitidos sumariamente, como Manuel Pinho e Correia de Campos.
Porquê?
Porque todos sabiam que, quando Sócrates caísse, o PS sairia do poder – e os lugarzinhos (ou lugarões) que Sócrates lhes oferecera ficariam em risco?
Será isto?
Será que as pessoas hoje já só se movem por interesse e por lugares?
P.S. – Noticiou-se que Sócrates vai para Paris estudar Filosofia. Esta notícia recordou-me a ‘ida’ para Londres em 2003, que acima descrevo. Alguém acredita que Sócrates ficará em Paris cinco anos sem ordenado? Para isso, precisaria de ter herdado uma fortuna ou de ter ganho nos últimos seis anos um vencimento que lhe tivesse permitido poupar muito dinheiro. Até porque a vida em Paris é caríssima...
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