quarta-feira, junho 22

Uma alma feminina para salvar o Parlamento

Manuel Tavares



Podemos ter de reformar o sistema de funcionamento da nossa Assembleia da República e ainda estamos a tempo. Podemos ter de rever as leis eleitorais para aproximar os deputados dos seus eleitores e ainda estamos a tempo. Só não nos sobrava tempo para evitar que o nosso parlamentarismo caísse no descrédito mais inútil: o da preguiça.
Certamente que já ninguém consegue situar em que ponto da nossa história parlamentar se iniciou a construção da imagem que muitos dos nossos concidadãos têm de um parlamento em que há quem durma nas sessões, quem as aproveite para navegar nas redes sociais ou quem pura e simplesmente vagueie pelos Passos Perdidos a fazer horas ou à cata do jornalista a quem passar o mexerico da politiquice. Talvez esta imagem tenha crescido à custa das notícias sobre as faltas que os deputados davam ou as viagens para todas as terras do Mundo menos para as dos círculos dos seus eleitores.
Certamente que há nesta imagem o exagero próprio dos descalabros em que todos acabamos por cair quando nos apercebemos de que erros e omissões não motivam reacções suficientemente inérgicas e os agentes políticos directamente implicados não dão sinal de poder reformar o que quer que seja.
Foi desta imagem deteriorada do nosso Parlamento que muitos dos nossos concidadãos passaram a um grau ainda mais grave da negação da democracia ao considerar os nossos partidos políticos incapazes de fazerem cumprir a moral republicana e de zelarem pelos bens públicos. Promiscuidades, abusos de poder e corrupções não apenas denegriram funções que deveriam permanecer intocáveis e acima de qualquer suspeita e acabaram por fazer recair sobre o parlamentarismo um capital de queixa dos cidadãos que deveria ser bem mais repartido pelos outros dois poderes: o Executivo e o Judicial.
Neste quadro de profunda deterioração da imagem pública dos deputados, não poderia ter acontecido nada de melhor que a inesperada eleição de uma mulher para presidir aos trabalhos da Assembleia da República. Além do mais, Assunção Esteves é jovem no que toca a tradição do cargo, mas experiente o suficiente para não permitir que sobre o lugar central da democracia continuem a pairar dúvidas sobre a mais essencial das virtudes do parlamentarismo: o trabalho. E o trabalho em prol do povo.
A primeira imagem desta mulher reconhecida pela sua competência em matéria de leis e sobretudo da lei-mãe, a nossa Constituição, foi retemperadora para quem gosta da democracia verdadeira, aquela que nunca descuida a forma por pressão dos acontecimentos, mas também que persiste nas reformas quando os acontecimentos convidam ao medo.
Mais do que a "alegria cristã" com que quis sublinhar a sua eleição ou a dedicatória que fez da função a todas as mulheres oprimidas ou ainda os sorrisos meio embaraçados com que retribuiu cada um dos elogios que recebeu de todas as bancadas, valeram sobretudo as palavras que Assunção Esteves encontrou para justificar o orgulho e a responsabilidade do cargo e partilhar connosco a dimensão da sua própria tarefa. Com um convite tão simples quanto irrecusável e através de uma daquelas frases que só uma mulher parece ser capaz de pronunciar sem gerar desconfiança mesmo entre os adversários políticos: "Ou decidimos melhorar o Mundo ou teremos de perguntar como se dorme o nosso sono".

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