terça-feira, junho 21

A lição de Sócrates

Inês Pedrosa


O autêntico discurso do dia de Portugal foi feito a 5 de Junho. José Sócrates fez da sua despedida uma homenagem aos portugueses e um testemunho de confiança em Portugal.
As suas palavras merecem ser ouvidas e respeitadas, para lá das embirrações pessoais (as provocadas por este primeiro-ministro dariam aliás interessantíssimos motivos de análise psicanalítica) e das divergências ideológicas.
A ideologia é obviamente importante, ser-se ‘de esquerda’ ou ‘de direita’ significa a defesa de modelos de sociedade distintos – aspecto que Sócrates nunca deixou de sublinhar, e assume particular relevância nesta era de ‘pragmatismos’ supostamente assépticos.
Como recordou já no período de respostas aos jornalistas, «as eleições não são um factor de razão, mas de legitimidade», isto é: não se muda de ideias e convicções por causa de uma derrota. As ideias são sufragadas – mas mal estaria o mundo se os projectos derrotados desistissem da força que os anima para se tornarem clones dos projectos eleitos.
O apuramento da responsabilidade das políticas faz-se através do voto – e cessa com a mudança de governo.
Cinco dias depois das eleições que conduziram a essa mudança, António Barreto, presidente das comemorações do Dia de Portugal, caiu na velha pecha de desancar ‘os políticos’ ( esquecendo-se talvez de que já pertenceu à infausta classe) e declarou «indispensável» o «apuramento de responsabilidades».
Apontar um dedo acusador ao Passado, com a maiúscula solene do indefinido, é actividade cujo lucro se cifra em mágoa, revolta e desalento – exactamente o contrário do que o país necessita. Sócrates, pelo contrário, deu uma lição de política – com o ‘p’ minúsculo e corajoso que nos cabe a todos. Porquê?
Em primeiro lugar, porque recordou que as ideias e as acções têm cores e sinais distintivos.
Em segundo lugar, porque deu exemplo de responsabilidade e desprendimento, afirmando-se pessoalmente responsável pela derrota e abandonando todo e qualquer cargo de poder. Disse: «Estou profundamente grato a Portugal e aos portugueses por me terem dado a oportunidade e a honra de servir o meu país». Disse: «Regresso por isso com orgulho à honrosa condição de militante de base do Partido Socialista». Disse: «Quero dar espaço ao PS para discutir livremente o seu futuro e afirmar uma nova liderança, sem qualquer condicionamento».
Quando uma jornalista, com a ironia que hoje faz as vezes de sentido crítico, lhe perguntou se «o amor» que declarava ao país não devia levá-lo a assumir o lugar de deputado, Sócrates recordou que o amor ao país não se exprime através da ganância e da ocupação de cargos.
É importante que as novas gerações, quaisquer que sejam as suas simpatias ideológicas, entendam a política deste modo, ou seja, como serviço público. Que aprendam a assumir as suas responsabilidades, nos bons como nos maus momentos. Que entendam o Poder como exercício altruísta – e temporário.
Em terceiro lugar, Sócrates felicitou os vencedores e agradeceu reconhecidamente a todos os que o acompanharam – duas atitudes pouco frequentes neste mundo contemporâneo em que demasiadas vezes nos deixamos atropelar por aquilo a que chamamos ‘velocidade’, porque nos custa admitir a perda e porque olhar de frente a memória nos fere o orgulho.
Nada do que conseguimos é só nosso: em todos os momentos dependemos dos outros.
A vida não é uma corrida onde só contam os vencedores.
Portugal já não é o «pobre país moreno e emigrante» que António Barreto trata por tu – é um país valente e livre que merece a deferência de que José Sócrates deu luminoso exemplo.

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