Leonel Moura
Quando só se tem um martelo, todos os problemas parecem um prego.
Esta frase, espirituosa, descreve bem a propensão que temos para reduzir qualquer questão à nossa área de saber ou interesse. Ou seja, para simplificar o que é complexo. Veja-se, a título de exemplo, o debate sobre o nunca resolvido tráfego automóvel nas cidades. Para um arquiteto o problema resolve-se com o desenho urbano; para um engenheiro com túneis e viadutos; para um académico com um modelo estatístico; para um ambientalista eliminando os carros; para um economista com taxas; para um político com discursos.
A tendência para o reducionismo é uma constante. Imagina-se que desmontando um Todo em pequenas partes e, tratando cada uma delas isoladamente, é possível resolver qualquer problema. Não é. Esquecem-se dois conceitos fundamentais. O de Gestalt, o Todo superior à soma das partes, e o de Emergência, a produção de complexidade a partir de múltiplas interações simples. Embora não pareça, vem isto a propósito das primeiras declarações do novel secretário de estado da cultura, o escritor Francisco José Viegas. Afirma ele que vai dar prioridade à promoção da língua e do livro. Ou seja, temos martelo. Homem da escrita e dos livros é perfeitamente natural que considere a língua como a coisa mais importante da política cultural do Governo. Aliás, não é o único e nem sequer existe aqui uma conotação ideológica. Basta recordar como a temática da língua também foi prioritária para os ministros da cultura dos governos do PS, José António Pinto Ribeiro e Isabel Pires de Lima. Esta última até queria construir um bizarro "Museu do Mar da Língua Portuguesa". Mas se a questão não é ideológica do ponto de vista político, é ideológica do ponto de vista cultural. Ou seja, esta ideia de que a língua portuguesa é central para a afirmação da nossa cultura no mundo é, não só retrógrada, como não tem nada a ver com a realidade deste mundo. Há muito que a língua deu lugar à comunicação. Num ambiente tecnológico de permanentes contaminações e mutações, a língua pensada como identidade não existe mais. Hoje pouco importa em que língua se escreve ou se fala, ou tão-pouco como se escreve ou se verbaliza. A comunicação é tudo. Pode ser produzida de múltiplas maneiras, combinando línguas e linguagens, misturando palavras e imagens, criando situações e interações. Na noção de hipertexto, a base da Internet, não existe a ideia de texto único, fechado, nem de linguagem coesa. Quando navegamos na Internet passamos de um texto para uma imagem, um vídeo, outros textos, na mesma ou noutras línguas, e por aí fora. Não há nestes exercícios, tornados tão banais, lugar a nenhuma pureza da língua. Tudo se mistura e se recombina. E com as novas plataformas digitais saltamos não só de mensagens, mas igualmente de meios. Por isso nunca entendi esta obsessão na promoção da língua portuguesa que tanto anima a vasta maioria da nossa intelectualidade. Julgo que se deve, paradoxalmente, à decadência cultural. A esse caldo de ideias, entre o saudosismo piegas e o reacionarismo rude, que se deleita na evocação dos descobrimentos, dos grandes feitos de antanho e da língua pátria de Fernando Pessoa, mas se recusa a encarar o presente. Contudo, nestas coisas é bom ser pragmático. A questão não está em escrever ou falar português, mas em dizer o quê? Permito-me contar uma pequena história elucidativa. Numa reunião em Bruxelas, com cerca de 20 pessoas de vários países europeus, uma deputada belga irritou-se por não existir tradução simultânea e se falar basicamente inglês ou francês. Como forma de protesto fez todas as suas intervenções em flamengo. A vasta maioria dos presentes não percebeu nada do que ela disse. E também ninguém se preocupou muito com o assunto. Toda a gente entendeu perfeitamente que, para além da afirmação do serôdio orgulho nacionalista, na realidade ela não tinha nada mais a dizer. A promoção da língua, como trave mestra de qualquer política cultural, representa uma forma de reducionismo da complexidade cultural em que vivemos. Em si não representa nada, nem alcança nada. O que importa mesmo é o que temos para dizer e não a língua em que o fazemos.
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