sexta-feira, junho 17

O choque do presente

Leonel Moura


Há certamente alguma coisa de intrinsecamente português na crise que atravessamos.
Coisas mal feitas ou que podiam ter sido feitas melhor, problemas estruturais, maneiras de ser e de estar, clima, rotinas, atrasos. Mas aquilo que realmente determina o essencial do momento negativo em que nos encontramos não é da nossa responsabilidade. É, sobretudo, deste tempo civilizacional que nos coube viver. E, já agora, também da incapacidade de o pensar e entender. 

Conjunturalmente, os economistas culpam o excesso de despesa do Estado; o esquerdismo diz que a origem do mal está no comportamento agiota e predador dos bancos; a direita aponta o dedo aos que não querem trabalhar; os demagogos acusam os políticos; e todos por junto não têm dúvidas de que foi Sócrates o causador da nossa desgraça. Argumento que, servindo de desculpa a néscios e inteligentes, a seu tempo irá desvanecendo por via dos ventos da cronologia. Nestes simplismos, esquece-se com demasiada frequência que atravessamos um período histórico de aceleradas transformações. Tão velozes e profundas que pessoas e instituições têm uma enorme dificuldade em acompanhar-lhes o passo. No topo da dinâmica de mudança está a revolução tecnológica e o tremendo maremoto que varre saberes, profissões, atividades e economias inteiras. Efeito que é potenciado pela globalização e pela legítima aspiração a melhor vida dos pobres, da China ao Brasil. No mundo da agressiva competitividade do lucro há sempre quem consiga produzir mais barato e atire, tanta vez do outro lado do planeta, imensas multidões para o desemprego. Acresce que temos assistido a uma franca decadência do papel regulador e de moderação social dos Estados. Em nome da liberdade de iniciativa, muito positiva em si mesmo, é o sentido do bem comum, da ética e da responsabilidade social que se vai perdendo. Os Estados, que sempre foram a antecâmara dos economicamente poderosos, são hoje quase totalmente dominados pelo interesse privado. Neste contexto, o permanente ataque à política, aos políticos e à democracia representativa tem claramente um objetivo ideológico de favorecimento dos poderes não-democráticos. Há ainda a considerar o efeito do número. Pense-se em Portugal. Com menos gente do que tantas cidades - São Paulo, Bombaim, Xangai ou Istambul têm cerca de 20 milhões cada -, torna-se difícil competir numa lógica de quantidade que gera qualidade. Se, a título de argumento, imaginarmos que o mundo produz um génio por cada 10 milhões de habitantes, nós só temos direito a 1. Por fim, e não menos importante, temos o fenómeno do ruído e consequente confusão mental, cultural e civilizacional, gerado pela média. A informação praticamente desapareceu, para dar lugar a uma verdadeira doutrinação quotidiana levada a cabo pelos meios de comunicação cada vez mais poderosos e omnipresentes. O jornalismo transformou-se numa militância. O campo do informativo é agora o palco privilegiado da política antipolítica. É assim que imaginar que os nossos problemas irão desaparecer através das simples receitas da redução das despesas do Estado local, diminuição das suas funções, privatização de tudo e fechamento nacional, cedo revelará ser uma grande ilusão. Há efetivamente que diminuir o papel do Estado, nalguns casos drasticamente, naqueles domínios em que ele interfere com a vida e a liberdade dos cidadãos. Mas, por outro lado, não se pode deixar de o reforçar nos campos fundamentais de acesso ao conhecimento, à saúde e bem-estar, e na defesa intransigente dos direitos de cidadania, trabalho e consumo. Ora isto não pode ser feito sem fortes convicções democráticas. O mesmo é dizer sem um manifesto sentido do bem comum. E aí, não há nada no horizonte da próxima governação de direita que aponte nesse sentido. Algumas ideias que aí vêm são mesmo bastante perniciosas. A desvalorização da educação, a sobrevalorização de tudo o que é privado, o nacionalismo e o populismo, só podem favorecer o atraso e a incapacidade de estarmos e sermos parte ativa no mundo. Não há nada de mais nefasto na procura de soluções do que não perceber o problema.

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